quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Dúvida - **** de *****

É complicado comentar sobre “Dúvida”, pois, primeiramente, o mesmo envolve discussões polêmicas dentre as quais prima-se a religião. Em segundo lugar, é um filme extremamente subjetivo e o final é muito aberto (o que não quer dizer que seja necessariamente ruim, muito pelo contrário), fato que o torna muito introspectivo. Em terceiro e último lugar, o mesmo conta com um roteiro muito bem escrito, mas falha como Cinema. O fato de o filme ter sido adaptado de uma peça teatral escrita por John Patrick Shanley, que assina como diretor e roteirista do longa, também parece prejudicar muito nessa sua transição para as telonas. Afinal de contas, não é todo o cineasta que consegue realizar o feito de adaptar uma peça criada por ele mesmo para a sétima Arte de um modo realmente satisfatório, como Ingmar Bergman fez em 1956 com o excelente “O Sétimo Selo”. Faltou a Shanley a experiência, a sagacidade e a genialidade de Bergman. Uma pena, pois o longa em questão conta com aspectos dramáticos realmente fortes e, nas mãos de um cineasta mais experiente, teria se revelado uma obra cinematográfica muito mais pretensiosa e, consequentemente, muito mais poderosa (ou não).

Ficha Técnica:
Título Original: Doubt.
Gênero: Drama.
Tempo de Duração: 104 minutos.
Ano de Lançamento: 2008.
Nacionalidade: Estados Unidos da América.
Direção: John Patrick Shanley.
Roteiro: John Patrick Shanley, baseado em peça teatral dele mesmo.
Elenco: Meryl Streep (Irmã Aloysius Beauvier), Philip Seymour Hoffman (Padre Brendan Flynn), Amy Adams (Irmã James), Viola Davis (Sra. Miller), Alice Drummond (Irmã Veronica), Audrie J. Neenan (Irmã Raymond), Susan Blommaert (Sra. Carson), Carrie Preston (Christine Hurley), John Costelloe (Warren Hurley), Lloyd Clay Brown (Jimmy Hurley), Joseph Foster (Donald Miller), Bridget Megan Clark (Noreen Horan), Mike Roukis (William London), Frank Shanley (Kevin), Frank Dolce (Ralph), Paulie Litt (Tommy Conroy) e Matthew Marvin (Raymond).

Sinopse: Em 1964, a diretora da escola St. Nicholas, a reacionária Irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep), entra em total conflito com o liberal Padre Brendan Flynn (Philip Seymour Hoffman), após ouvir uma estória contada pela inocente e ingênua Irmã James (Amy Adams), que desconfia que o pároco abusa sexualmente de Donald Miller (Joseph Foster), o primeiro aluno negro a ser aceito na instituição conservadora. A partir daí Beauvier assume uma investigação informal para tentar comprovar a veracidade do boato.

Doubt – Trailer:

Crítica:

Por um acaso o leitor já assistiu ao clássico de Akira Kurosawa, “Rashomon”? Se a resposta for “não”, pule esta e as próximas três linhas. Se a resposta for “sim”, por obséquio, leia a pergunta que se segue. O leitor gostou do final de “Rashomon”? Se a resposta for “não”, há uma grande chance de não gostar do final deste “Dúvida”, mas caso a resposta seja “sim”, você provavelmente irá se sentir atraído pelo final de “Dúvida”. Digo isto pois o filme de Shanley tem algumas semelhanças (não muitas, confesso, e lamento dizer que esta analogia cinematográfica não foi das melhores) com a obra de Kurosawa, sobretudo no que diz respeito ao seu encerramento. Uma pessoa (um padre) é acusada de ter cometido um determinado crime (no caso, pedofilia). Passa-se um longo tempo tentando provar algo contra, ou até mesmo a favor do suspeito e, quando chegamos ao final da trama, não temos certeza absoluta se o indivíduo cometeu, ou não, o delito do qual fora acusado (a propósito, gostaria de informar que não estou “estragando” o filme de ninguém ao revelar que o mesmo não tem uma resolução). Como podem notar, o final fica em aberto, assim como ocorre com “Rashomon”. Mas da mesma forma que o filme japonês, o desfecho irregular (se é que posso tachá-lo assim) de “Dúvida” só tem a contribuir para o ótimo resultado final do mesmo, pois somente desta forma podemos levantar questionamentos imparciais acerca da filosofia de vida adotada por cada personagem. Isto sem contar, é claro, que o desfecho obscuro só vem a frisar ainda mais a palavra que dá título ao filme.

A propósito, do início ao fim da trama, a ‘dúvida’ parece estar presente durante todo o instante. Desde o sermão feito pelo Padre Flynn, logo na abertura do filme, passando pelos questionamentos levantados pela Irmã Beauvier e encerrando-se com a incógnita que toma conta da finalização do longa. A ‘dúvida’, ironicamente, parece ser a grande vilã do filme. A impressão que fica é que ela assume, simultaneamente, a função de antagonista e protagonista da obra que leva o seu nome. A ‘dúvida’ parece ser personificada durante o desenrolar da trama, tanto que diálogos como “O que vocês fazem quando não têm certeza?” e “A dúvida pode ser um elo tão encorajador e certeiro quanto a certeza.” marcam presença direta por aqui.

E afinal de contas, o que pode ser mais perturbador do que uma ‘dúvida’? Assim como tal sentimento pode ser instigante (segundo Albert Einstein: “O misterioso (que, neste caso, pode ser substituído pela dúvida de alguma coisa) é a coisa mais bela que pode existir, pois ele é a razão de toda a Ciência a de toda a Arte”), ele também pode ser a causa de muitas injustiças e muitas acusações levantadas por mero senso comum, como é o caso das indagações de Irmã Aloysius sobre o Padre Brendan. Enfim, se você almeja ir ao cinema e deparar-se com uma obra que lhe bombardeie a mente com vários pensamentos, talvez este “Dúvida” seja um dos mais indicados, dentre os demais que estão em cartaz no presente momento, para tal.

Mas o forte do filme não está nas reflexões que ele nos remete. Não, de forma alguma. O roteiro até que se mostra sagaz quando o assunto em pauta é a abordagem das mesmas, mas a direção de John Patrick Shanley é fraca demais para captar toda a sutileza embutida em seu script. Planos-sequências como a cena do vento, onde várias penas voam livremente pelo ar, são difíceis de serem encontradas por aqui, e um filme que nos levanta tantas indagações não pode se dar ao luxo de contar com tão poucas metáforas como “Dúvida” conta. Não bastasse isso, o diretor ainda apela a recursos muito artificiais na tentativa de aumentar a carga dramática de determinadas cenas, como as lâmpadas que queimam a todo o instante ou as sequências em que a governanta aparece do nada com um gato nas mãos. A movimentação com as câmeras também não é das melhores. Raramente vemos Shanley criar um ângulo realmente convincente com a sua câmera e o uso de recursos como travelings, closes ou deep focus é praticamente nulo. “___ E no que diz respeito à condução de elenco? Como se sai Shanley?”. O elenco se sai magistralmente bem, todos os atores estão excelentes, todos os atores são dignos de todas as indicações ao Oscar que receberam (embora nenhuma das atuações seja digna de se faturar o prêmio), mas convenhamos, uma equipe composta por Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman e Amy Adams não precisa de um grande cineasta para render atuações incríveis, não é mesmo? Logo, nem mesmo as fantásticas atuações podem contar pontos positivos para o diretor.

Continuemos. Antes de acoimar a direção de “Dúvida” lembro-me de que iria citar o ponto forte da obra, não? Pois então vamos lá. Conforme já dei a dica no parágrafo acima, o ápice do longa reside nas atuações do mesmo, bem como na construção de seus respectivos protagonistas. Começando pela Sra. Miller, o pouco tempo em que ela aparece em cena já se revela o suficiente para explora-la. Não, não é uma personagem simples, muito pelo contrário. Acontece que o roteiro troca o quantitativo pelo qualitativo e faz com que os menos de dez minutos em que a mesma aparece em cena sejam o suficiente para transforma-la em uma mulher que parece ter sofrido a vida inteira nas mãos do marido. O modo estóico como encara certos problemas (se é que posso chamar assim) do filho também é algo que chama muita atenção em sua composição. A atuação de Viola Davis acrescenta muito à sua personagem e é incrível notarmos a capacidade da atriz que, com pouquíssimo tempo em cena, desbanca atores do naipe de Streep e Hoffman que tem o filme inteiro pelo frente (e olha que ambos atuaram muito bem em seus respectivos papéis).

Amy Adams também convence na pele de Irmã James. Aparentemente, a personagem não passa de uma freira bondosa e sonsa, mas conforme a trama vai se desenrolando passamos a nos dar conta de que a mesma é fundamental para a trama, e isso não se deve apenas ao fato de ser ela quem começa a levantar os boatos a cerca do comportamento do Padre Flynn. Dentre todos os personagens, James parece ser a que mais conta com o sentimento que dá título ao filme. Ora a jovem é meiga, delicada e, assim como Flynn, crê na bondade e na tolerância como métodos educativos. Ora ela é rígida, enérgica e rude, assim como Irmã Aloysius Beauvier. Talvez tenha sido o modo natural como a atriz alterna entre estas duas personalidades, em frações de minutos, que tenha chamado tanto a atenção da Academia, a ponto de faze-la receber uma indicação ao prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante. A propósito, é ótimo vermos uma atriz tão jovem e bela se destacando tão bem no Cinema. Pena Keira Knightley não ter seguido o mesmo caminho.

Brendan Flynn, por sua vez, é, de longe, o personagem mais instigante da trama. Apesar de levar o seu trabalho extremamente a sério, o pároco se revela bastante liberal e provavelmente esta seja a maior causa das suspeitas que as freiras passam a ter dele. Ao mesmo tempo em que o vigário trata os seus jovens pupilos com toda a sutileza e afetividade possíveis, o mesmo passa as horas de folga bebendo cerveja, comendo carne vermelha em grandes quantidades, fumando, e contando aos seus amigos, muitos deles também pessoas de certo renome dentro da Igreja Católica, sobre experiências sexuais que já vivenciou. Hoffman, além de contar com todos os pré-requisitos (é com hífen? Até hoje confundo) físicos para compor Flynn, possui o carisma necessário para construir o seu personagem e, sempre que entra em cena, a qualidade do filme é elevada. É ainda mais elevada quando temos um fantástico duelo de atuações entre ele e a personagem de Meryl Streep.

E falando em Streep, a sua personagem é, sem sombra de dúvidas, a mais difícil de se analisar. Assim como a sua Miranda Priestly do fraco “O Diabo Veste Prada”, Irmã Aloysius Beauvier se revela uma personagem amplamente caricata. Sempre séria e rígida, a diretora da escola St. Nicholas é o estereótipo da megera que raramente sorri, exceto quando solta aqueles sorrisos sem dentes e de canto de boca que indicam desgosto com determinada coisa. Deve-se comentar também o fato da mesma anunciar sua presença através de seu olhar ditador e da secura de sua voz. Contudo, essa “maldade” toda parece ser apenas uma fachada para enganar as demais pessoas que convivem com ela e fazer com que as mesmas aceitem, a todo o custo, a sua filosofia de vida e de ensino. Note, por exemplo, que por mais reacionária que a mesma aparente ser, ela conta com alguns desvios de caráter, como comprova a cena em que oculta os problemas visuais que uma professora possui, a fim de assegurar o emprego da mesma. Ou seja, deixa de cumprir friamente com o seu dever, assim como está acostumada a fazer, e coloca a bondade em primeiro plano. O quê? A atuação de Streep? É difícil de se analisar. A atriz, como de costume, esbanja profissionalismo, expressividade e, acreditem, até mesmo carisma (e olha que conferir carisma a uma personagem tão insuportável quanto Beauvier é algo louvável). Sem contar que ela não tem culpa de seu papel ser bastante caricato. Logo, mantenho a opinião que expus em meu texto sobre “O Leitor”: a atuação dela neste filme supera a de Winslet no longa roteirizado por David Hare.

“Dúvida” se revela, no final das contas, um interessantíssimo estudo de personagens, bem como o modo com que o sentimento que intitulou o filme pode influenciar o cotidiano destes e, muitas vezes, mudar a vida de várias pessoas para melhor, ou para pior. O longa também nos leva a muitos questionamentos, dentre os quais pode-se destacar o rumo que a Igreja deveria adotar: a incerteza dos pensadores liberais, ou a frieza e o preconceito empregados pelos pensadores conservadores (apesar de que, francamente, acredito que a Igreja deveria simplesmente deixar de existir, mas isso não vem ao caso agora)? O elenco se destaca muito bem e o duelo de atuações entre Streep e Hoffman consegue corresponder às expectativas previamente formuladas pelos cinéfilos (exceto por este que vos escreve, pois como sempre digo, em raros os casos formo expectativas antes mesmo de assistir a um determinado filme). Infelizmente, um filme que tinha várias chances de se tornar um marco na história do Cinema, acabou se rendendo ao trabalho pouco pretensioso, técnica e artisticamente falando, de John Patrick Shanley (neste caso, refiro-me a ele como diretor de “Dúvida”, e não como roteirista do mesmo) e à exagerada caracterização de sua protagonista. Um ótimo filme, mesmo assim.

Avaliação Final: 8,0 na escala de 10,0.

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