sábado, 31 de janeiro de 2009

Quem Quer Ser um Milionário? - *** de *****

Lembro-me de que no início de 2008, bem antes da cerimônia de entrega do Oscar, apontei o longa “Onde os Fracos Não Têm Vez” como provável vencedor do prêmio de Melhor Filme daquele ano. Contudo, ao assisti-lo pela primeira vez, mudei de opinião sobre o mesmo e passei a alegar que a obra dos Coen era ‘moderninha’ demais para conseguir faturar o prêmio. Se levarmos em conta que os membros da Academia são um bando de velhos caquéticos e conservadores que não gostam nem um pouco de certas inovações, principalmente as de cunho narrativo (que, por sinal, ocorrem com freqüência em “Onde os Fracos Não Têm Vez”), era de se estranhar que o longa protagonizado por Tommy Lee Jones conseguisse se sair bem naquela noite. Concluí então que o prêmio deveria ficar com “Sangue Negro”, pelo fato deste ter “a cara do Oscar”. Equivoquei-me e o prêmio de Melhor Filme foi atribuído a “Onde os Fracos Não Têm Vez”. No começo de 2009 cometi o mesmo erro e precipitei-me novamente, afirmando que o prêmio do corrente ano obviamente ficaria com “O Curioso Caso de Benjamin Button”. Felizmente, tudo indica que o filme de Eric Roth, mesmo tendo sido indicado a 13 prêmios, irá perder as principais disputas para este “Quem Quer Ser um Milionário?”. E se o filme de Danny Boyle está sendo superestimado e representa uma das piores produções de toda a sua carreira (assim como “... Benjamin Button” representa uma das piores produções de toda a carreira de David Fincher), ao menos o longa é ligeiramente superior ao seu principal concorrente e é bem mais... digamos... ‘sério’ do que aquele.

Ficha Técnica:
Título Original: Slumdog Millionaire.
Gênero: Drama.
Ano de Lançamento: 2008.
Site Oficial: http://www.foxsearchlight.com/slumdogmillionaire
Nacionalidade: Estados Unidos / Reino Unido.
Tempo de Duração: 120 minutos.
Diretor: Danny Boyle e Loveleen Tandan (co-diretor).
Roteiristas: Seamon Beaufoy baseado em romance de Vikas Swarup.
Elenco: Dev Patel (Jamil Malik), Ayush Mahesh Khedekar (Jovem Jamal), Azharuddin Mohammed Ismail (Jovem Salim), Freida Pinto (Latika), Madhur Mittal (Salim mais velho), Tanay Chheda (Jamal Adolescente), Ashutosh Lobo Gajiwala (Salim Adolescente), Rajendranath Zutshi (Diretor do Programa), Mahesh Manjrekar (Javed), Ankur Vikal (Maman), Anil Kapoor (Prem Kumar), Tanvi Ganesh Lonkar (Latika Adolescente), Rubiana Ali (Jovem Latika), Saurabh Shukla (Sargento Srinivas) e Irffan Kahn (Oficial de Polícia).

Sinopse: Jamal Malik (Dev Patel) é um jovem proveniente de uma gigantesca favela de Bombaim que tem a chance de mudar de vida para sempre participando do programa televisivo “Quem Quer Ser um Milionário?”. Durante o programa, Jamal relembra algumas experiências vivenciadas por si que condizem com as perguntas que lhes são apresentadas. A partir daí somos convidados a conhecer a dura realidade dos favelados indianos.

Slumdog Millionaire - Trailer:


Crítica:

Durante uma conversa por Orkut com uma amiga que reside na capital do estado do Rio de Janeiro, lembro-me de que a mesma comentou comigo que o título nacional conferido ao mais novo filme de Danny Boyle, “Quem Quer Ser um Milionário?”, remetia-lhe diretamente a um programa de auditório apresentado pelo lendário Silvio Santos. Mal sabia ela que é justamente disso que o filme trata. Utilizando um programa idêntico (e ponha idêntico nisso) a “Show do Milhão” para embasar a sua estrutura narrativa, o filme trás como pano de fundo a estória de dois irmãos indianos, Jamal e Salim, e uma bela garota que desperta interesse em ambos, Latika. Enquanto Jamal responde às perguntas feitas pelo apresentador do programa, vários acontecimentos de sua miserável vida vêm-lhe à mente.

Assim como “O Curioso Caso de Benjamin Button”, “Quem Quer Ser um Milionário?” faz uso de uma narração construída através de vários flashbacks. A diferença é que, enquanto o primeiro utiliza a batida leitura de um diário para compor a sua estrutura narrativa, o segundo emprega uma idéia infinitamente mais original e interessante do que a do filme dirigido por Fincher. O problema é que a adoção de tal recurso torna-se muito artificial durante boa parte do longa, dependendo de uma gigantesca série de coincidências para funcionar. Por exemplo, quando é perguntado a Jamal qual é a celebridade estadunidense que ilustra a nota de cem dólares, este responde corretamente que trata-se de Benjamin Franklin, sem nem ao menos saber o que o homenageado representou para a ciência e para a história daquele país. Acontece que, em uma determinada ocasião da vida de Jamal, este recebeu uma nota de cem dólares de um casal de turistas americanos e a mesma continha a foto de Franklin. A mesmíssima coisa ocorre quando quase todas as outras perguntas são feitas ao rapaz. Sempre que um desafio lhe é lançado, o protagonista da trama coincidentemente já vivenciou alguma experiência que lhe remeta à resposta correta.

É claro que há a possibilidade do roteiro ter criado tais coincidências propositadamente. Qual seria o motivo? Francamente, não sei. Pode ser que a trama queira nos mostrar que o melhor “professor” que a vida pode nos oferecer, é ela mesma. Afinal de contas, Jamal é o que pode-se chamar de completo analfabeto (uma vez que não possui o menor grau de escolaridade) e ainda assim é dotado de uma cultura satisfatória. Cultura esta que não fora adquirida nas escolas ou durante a leitura de vários livros, mas sim através de uma série de empirismos pela qual a vida o fez vivenciar. Adotemos então esta hipótese. Ela, por si só, já elimina as demais falhas contidas no longa? Não, certamente não. Por mais agitada que tivesse sido a existência de Jamal (e realmente foi, conforme veremos mais abaixo), ela foi curta demais para que o mesmo pudesse adquirir respostas a todas as perguntas feitas no programa televisivo. Caso o protagonista fosse dez anos mais velho, o roteiro talvez não soasse tão artificial quanto realmente soa, mas infelizmente isso não acontece.

Mesmo com tantos defeitos inseridos em seus dois primeiros atos, não há como negar que o filme destaca-se com muita freqüência. A estrutura narrativa é artificial, não se tenha dúvidas quanto a isto, mas, conforme já fora dito, é original e interessante, assim como a infância e o início de adolescência de Jamal. Ao contrário de muitos filmes do gênero, a vida do protagonista de “Quem Quer Ser um Milionário?” não consiste apenas em conviver com uma série de frustrações e tristezas que um garoto favelado tende a passar. Há uma cena em especial que nos remete a um momento marcante na vida do garoto, quando o mesmo recebe um autógrafo de seu ídolo máximo, um ator de filmes de ação. Um reles rabisco feito com a caneta aparenta ser o suficiente para alegrar uma pessoa cuja vida mostrou-se tão miserável. Essa cena, aliás, revela-se soberba quando mostra o quão alienadas são as pessoas. Só para se ter uma idéia, para que Jamal consiga obter a lembrança presenteada pelo ídolo, o mesmo se vê obrigado a mergulhar em uma fossa e ficar coberto de fezes (a propósito, Boyle parece ter uma tara em ver os seus personagens imergirem em excrementos, não? Mas, assim como ocorria em “Trainspoting – Sem Limites”, esta cena tem um propósito muito maior do que simplesmente causar náuseas no expectador). Um grande esforço para conseguir um reles rabisco, futilidades que, cada vez mais, fazem parte da vida de pessoas carentes (não apenas financeiramente carentes, como afetivamente também).

O realismo contido aqui também é algo digno de se causar inveja e certamente fica marcado como a maior qualidade do filme. Focando-se durante praticamente toda a sua primeira hora nos diversos problemas enfrentados pelos habitantes das favelas indianas, o longa exibe, de maneira fiel e chocante, um amplo panorama sobre as mais complexas dificuldades pelas quais aquelas pessoas sofrem, passando pelo descaso com o qual o governo local os trata e exibindo até mesmo os conflitos religiosos fortemente sanguinolentos ocorridos naquele local do globo terrestre.

À medida em que a trama vai avançando, a miséria enfrentada pelos protagonistas da mesma vai sendo cada vez mais cruelmente retratada. Utilizando a famosa ‘malandragem’, típica de todo o indivíduo que não tem outra “arma” para garantir a sua subsistência, a fim de “subir” na vida, os dois irmãos passam a tapear turistas fazendo-se de guias. Mais para frente, no entanto, eles recebem a ajuda de um homem que aparenta ser de boa índole e visa tirar os garotos de rua daquela vida infeliz. Seu nome é Maman. A trama avança e logo vemos que Maman, de bom, não tinha nada. O bom samaritano, na realidade, nada mais é que um aproveitador que visa lucrar através da exploração destes garotos. A propósito, é durante esta parte que o filme nos apresenta a sua cena mais forte, quando o bandido cega um garoto visando lucrar com a invalidez do mesmo.

Cientes do perigo que estavam correndo, Jamil e Salim fogem das garras de Maman e decidem iniciar uma nova vida. Ambos passam a trabalhar em uma lanchonete, mas a ambição de Salim é grande e este sente-se cada vez mais tentado a entrar para o submundo do crime. Passa-se algum tempo e os garotos resolvem resgatar Latika, uma amiga de infância que agora é escrava de Maman. Durante tal resgate ambos entram em confronto direto com o famoso gangster e o matam. Com medo de ser morto pelos capangas de Maman, Salim pede ajuda e proteção a Javed Khan, um famoso mafioso. A ambição sobe à mente de Salim, que passa a reivindicar o corpo de Latika. Jamil, que era completamente apaixonado pela garota, discuti com o irmão e ambos se separam.

Até a parte citada no parágrafo acima, o filme era sensacional e só não se mostrava perfeito em virtude das inúmeras coincidências que tornavam o roteiro artificial em muitos momentos. Infelizmente, a qualidade do filme cai visivelmente depois que Jamal briga com irmão. Sem a menor sutilidade, o roteiro nos apresenta ao protagonista alguns anos mais velho, trabalhando como assessor de telemarketing (leia-se, o indivíduo que serve chá aos telefonistas). Entretanto, algumas perguntas ficam no ar. Como Jamal arrumou este emprego? O que ele fez antes disso? O roteiro nem ao menos se preocupa em responder tais questionamentos.

Mas estes detalhes são muito pequenos face aos maiores erros cometidos pelo filme durante esta sua última parte. O filme que se propunha a narrar a brilhante ascenção dos dois irmãos no submundo do crime, abandona esta premissa e decide contar-nos uma estorinha de amor nada interessante. Além de apostar na pieguice muitas vezes, o romance entre Jamal e Latika é previsível e destoa terrivelmente da proposta inicial do filme, que prometia nos apresentar a um resultado final infinitamente mais agradável do que acabou apresentando.

Não bastasse a previsibilidade do romance, que passa a assumir o primeiro plano da trama, o relacionamento entre ambos ainda peca catastroficamente ao ser piegas em excesso e tornar o longa 'redondinho' demais para os padrões atuais (assim como “O Curioso Caso de Benjamin Button” também o faz, a diferença é que o filme roteirizado por Eric Roth prima por conter um desfecho dramático, ao passo em que “Quem Quer Ser um Milionário?” conta com um dos finais mais previsíveis e decepcionantes dos últimos tempos).

Aliás, não só o romance inserido nos últimos cinqüenta minutos do longa, como também muitos outros aspectos da obra em si, revelam-se grande “vilões” no que diz respeito à gritante perda de qualidade do filme. A trama vai caminhando para um final bonitinho, um final forçado, um final bem aquém do esperado, um final que não condiz, em momento algum, com a maestria demonstrada no início do longa. Personagens vão sofrendo alterações de caráter da maneira mais artificial e maniqueísta o possível (vide Salim, por exemplo) e a crueldade e o forte grau de realismo exibidos no início de “Quem Quer Ser um Milionário?”, vão sendo substituídos por uma estória de amor desnecessária.

Ao menos o filme conta com uma característica que se mantém regular durante toda a sua projeção. Refiro-me à fantástica direção de Danny Boyle, o melhor trabalho realizado por um diretor dentre os filmes produzidos no ano de 2008 (e é claro que só estou incluindo aqui, as produções a que assisti no corrente ano, deve-se levar em conta que não assisti a todas). Muitos tacharam a direção de 'videoclipeira', o que não deixa de ser uma realidade, mas eu pergunto, e daí? Qual o problema de Boyle adotar este estilo de direção contanto que saibamos exatamente o que está acontecendo na telona? Uma coisa é Tony Scott adotar estilismos 'videoclipeiros' e criar uma bomba extremamente confusa, como é o caso de “Domino – A Caçadora de Recompensas”, outra coisa é Danny Boyle adotar um estilo de direção parecido a fim de conferir uma dose extra de ritmo a “Quem Quer Ser um Milionário?”. A não ser, é claro, que você desdenhe a eficiência com que ele filma a seqüência da perseguição que abre o filme e o inteligente uso de closes outs reeditados que nos dão uma fantástica visão aérea da favela onde se passa boa parte do longa.

Longe de merecer vencer os Oscar que certamente irá faturar no dia 22 de fevereiro de 2009, “Quem Quer Ser um Milionário?” revela-se unicamente um bom filme e nada mais. O tom realista, as grandes atuações por parte de todo o elenco, o roteiro que mostra uma verdade nua e crua, a ascenção dos personagens, a conturbada vida dos favelados de Bombaim, a maturidade de uma estória que, apesar de contar com recursos artificiais para o seu funcionamento, aborda temas complexos e polêmicos de um modo inteligente e, até mesmo a magnífica e revolucionária direção de Danny Boyle (que apesar de jamais poder ser alcunhada de irregular, perde um pouco de seu ritmo durante os cinquenta minutos finais do longa), são “tijolos” muito bem confeccionados que constroem um longa sensacional durante a sua primeira metade. Contudo, chega a segunda metade do filme e, com ela, vem a previsibilidade, a estória de amor dispensável e nada convincente, a pieguice, e a velha mania de conferir um 'final feliz' que soa altamente desconexo com a proposta inicial do filme.

O quê? Ah, sim, a fotografia, a direção de arte, a edição de som e os demais aspectos técnicos de “Quem Quer Ser um Milionário?” também se revelam um primor e só não os comentei neste texto por acreditar que iria alongá-lo ainda mais. Portanto, assim como fiz com “... Benjamin Button”, digo que caso o filme ambientado na Índia leve estes prêmios para casa, será algo mais do que merecido.

É lamentável percebermos que, dois dos melhores diretores da atualidade (Boyle e Fincher) irão receber os prêmios mais importantes de suas carreiras por causa de dois de seus piores filmes.

Avaliação Final: 7,0 na escala de 10,0.

Nenhum comentário: