Crítica Técnica: O Poderoso Chefão – Parte I (Francis Ford Coppola, 1972), por Daniel Esteves de Barros
Nota: ★★★★★ (5/5)
Francis Ford Coppola, ao adaptar o romance de Mario Puzo, realiza em O Poderoso Chefão – Parte I uma obra que, embora não busque a assepsia técnica e o rigor geométrico de 2001: Uma Odisseia no Espaço, atinge uma grandeza estética e dramática talvez mais rarefeita — a de um Cinema que respira humanidade, historicidade e densidade moral através de cada gesto, cada sombra e cada decisão diegética.
Se Kubrick opera como um demiurgo científico, Coppola atua como um pintor barroco: luz, corpo e mise-en-scène ordenam-se para produzir uma dramaturgia da carne e da tradição, da memória e da violência ritualizada. O resultado é uma síntese ímpar entre classicismo e modernidade, entre o épico e o íntimo, entre o melodrama e o filme de gângster.
1. A abertura como enunciação estética e política: o plano de Buonassera
A sequência inicial é um manifesto formal. Coppola inicia com um plano americano em progressivo recuo (zoom out reverso), mas é Gordon Willis quem constrói o sentido: o chiaroscuro extremo — mais próximo de Rembrandt do que do noir tradicional — inscreve Buonassera em um espaço de opacidade moral, um limiar entre a crença no Estado e a capitulação perante a autoridade paralela da Máfia.
O traveling retrocede lentamente, expondo gradualmente o dispositivo diegético:
o pedido de justiça como liturgia;
Don Vito como entidade sacralizada;
a família como eixo de organização social mais eficaz do que o Estado moderno.
A mise-en-scène aqui não apenas apresenta personagens: apresenta o sistema de forças que regerá toda a narrativa. Assim como em Laranja Mecânica, o primeiro plano é conceito: é premissa dramatúrgica.
2. O casamento como dispositivo de apresentação: montagem sintática e polifonia dramática
A sequência do casamento de Connie Corleone figura entre as mais elaboradas da historiografia do Cinema clássico. Coppola opera uma montagem sintática, alternando continuamente entre:
o espaço público (a festa, o espetáculo social, a teatralidade italiana)
o espaço privado (o escritório de Don Vito, o confessionário clandestino da máfia)
Essa dialética espacial condensa o programa temático do filme: a coexistência entre o afeto familiar e a brutalidade estrutural da criminalidade organizada.
As entradas de personagens no salão e sua posterior presença no escritório constituem um processo de apresentação elíptica que economiza tempo dramático e simultaneamente define hierarquias, alianças, tensões e códigos éticos. Trata-se de um dos usos mais eficientes de montagem paralela na história do Cinema narrativo clássico.
Brando, por sua vez, compõe um Vito Corleone cuja fisicalidade — as bochechas caídas, a articulação vocal abafada, o gesto econômico — se torna uma gramática corporal autônoma. A performance é menos realista do que icônica: um arquétipo dramatúrgico em estado puro.
3. A construção de cenas antológicas: unidade formal e coerência temática
A grandiosidade do filme não reside apenas na presença de “cenas memoráveis”, mas na coesão estrutural que conecta cada uma delas à progressão dramática. Entre as mais significativas:
a “proposta irrecusável” e o cavalo degolado — síntese visual do poder absoluto;
o jantar no Bronx — turning point psicológico da trajetória de Michael;
a arcádia siciliana — pausa pastoral que antecipa a ruína;
o massacre no pedágio — ruptura brutal que destrói o idealismo residual de Michael;
o batismo — uma das mais sofisticadas execuções de montagem paralela antitética já filmadas;
a porta que se fecha sobre Kay — imagem-síntese da corrupção moral definitiva.
A montagem de Barry Malkin e Peter Zinner opera aqui como uma engenharia narrativa, não apenas encadeando eventos, mas forjando sentidos por meio da contraposição, da simultaneidade e da ironia dramática.
4. A dramaturgia maquiavélica: método, cálculo e frieza estratégica
O roteiro de Puzo e Coppola possui uma construção deliberadamente maquiavélica, no sentido clássico do termo. A ação criminosa não é explosiva, mas processual, burocrática, estratégica. Cada assassinato, cada sequestro, cada represália é:
planejado;
contingenciado;
pesadamente justificado dentro da lógica interna da “honra”.
Essa frieza estrutural confere ao filme um caráter quase administrativo da violência — não há indulgência emocional, apenas cálculo.
O resultado é um dos roteiros mais matematicamente organizados do Cinema moderno.
5. A arcada trágica de Michael Corleone: da ética à corrupção
Michael é o eixo dramático da trilogia e talvez uma das construções de personagem mais densas da história do Cinema. Coppola e Al Pacino operam em três registros:
O jovem patriota idealista — voz suave, postura aberta, moralidade clara.
O herdeiro relutante — rigidez corporal crescente, olhar controlado.
O príncipe das trevas — minimalismo expressivo, frieza absoluta, linguagem corporal aristocrática.
A transformação não é súbita: é um processo trágico no sentido aristotélico, no qual a identidade se desvia ao longo de pequenas inflexões morais, cada uma mais irreversível do que a anterior.
Michael não cai: ele é moldado.
6. Música, fotografia e espacialidade: os pilares estéticos da obra-prima
Nino Rota: o sublime melódico
A trilha funciona como um leitmotiv operístico, conectando a herança italiana, a nostalgia e a tristeza estrutural dos Corleone. “Brucia La Terra” é talvez o ponto mais lírico da composição, funcionando como contraponto emocional à brutalidade intrínseca da narrativa.
Gordon Willis: o “Príncipe das Trevas”
A fotografia define visualmente o ethos da máfia:
sombras profundas e amarelos quentes em Nova York;
luzes mais saturadas e artificiais em Las Vegas;
claridade terrosa, quase impressionista, na Sicília.
Essa cartografia cromática constitui uma geopolítica visual, na qual cada espaço é pensado como extensão simbólica do estado interno dos personagens.
7. Direção de Arte: a espacialização da narrativa
Os cenários são articulados segundo critérios dramáticos rigorosos:
a mansão dos Corleone — solene, densa, quase feudal;
o palacete de Woltz — ostentação vazia e decadente;
Las Vegas — espetáculo capitalista de luz e ruído;
a Sicília — o mito, a origem, a ancestralidade.
A arte aqui não ilustra: ela comenta.
Conclusão: a obra total do Cinema narrativo
O Poderoso Chefão – Parte I é, sob critérios estritamente técnicos e narrativos, uma das produções mais completas já realizadas. O equilíbrio entre estrutura, performance, fotografia, trilha-sonora, direção de arte e rigor dramatúrgico faz com que o filme transcenda o gênero e se torne uma espécie de poema épico-filmico, capaz de sintetizar cultura, história e tragédia familiar em um só organismo estético.
Trata-se, sem exagero, de uma obra que define o Cinema como Arte.

Nenhum comentário:
Postar um comentário