quarta-feira, 19 de novembro de 2025

🎬 Crítica Técnica: 2001: Uma Odisseia no Espaço (de Stanley Kubrick, 1968)

 🎬  Crítica Técnica: 2001: Uma Odisseia no Espaço (de Stanley Kubrick, 1968), por Daniel Esteves de Barros

Nota: ★★★★★ (5/5)



Pouquíssimos filmes na história do cinema apresentam uma correlação tão absoluta entre forma e significado quanto 2001: A Space Odyssey. Kubrick elabora aqui uma obra em que a precisão estética não é ornamento, mas coração pulsante da dramaturgia — possivelmente a produção mais tecnicamente perfeita já realizada, mesmo que “perfeição técnica” e “melhor filme” não sejam categorias obrigatoriamente coincidentes. É, sobretudo, um filme feito por um cineasta que domina a linguagem cinematográfica em nível estrutural e destinado a espectadores que compreendem e reconhecem esse domínio.


Mise-en-scène e estrutura cíclica da evolução

mise-en-scène de 2001 talvez seja a mais meticulosamente arquitetada já vista no cinema narrativo. Kubrick não apenas organiza objetos, corpos e luzes no espaço; ele cria significados geométricos, introduzindo a circularidade como princípio estilístico que reflete uma tese filosófica sobre a condição humana: a evolução do homem é cíclica, e justamente por ser cíclica, frequentemente se autolimita.

A circularidade aparece como eixo plástico e conceitual:

  • Travellings circulares que descrevem trajetórias repetitivas;
  • Cápsulas e naves espaciais com design circular, cuja construção rendeu a merecida indicação ao Oscar;
  • Corpos orbitando o espaço;
  • A valsa — especialmente The Blue Danube — cuja dança é circular por princípio coreográfico.

Kubrick converte esse motivo em metáfora visual da busca eterna pela perfeição, um movimento que avança, retorna, repete-se, hesita — e, por isso, raramente chega ao objetivo final.


Do osso à nave: o maior raccord da história do cinema

A ruptura entre o capítulo paleolítico e o capítulo tecnológico é estruturada no que se convencionou chamar de maior elipse temporal já proposta em um raccord, quando um osso atirado ao céu transforma-se instantaneamente em uma nave espacial. A operação, além de brilhante do ponto de vista sintático, sintetiza o argumento de Kubrick:
o homem evoluiu na forma, nunca na essência.
A ferramenta muda; o impulso — sobrevivência e poder — permanece.

A origem primitiva do gesto, portanto, não desaparece: ela apenas se revestiu de tecnologia.


Tecnologia como coautora da existência

Kubrick mostra uma humanidade que, ao distanciar-se de seu passado animal, transfere o protagonismo existencial à tecnologia. Essa tecnologia, embora eficiente como vetor evolutivo, transforma-se em ameaça quando elevada à condição de agente ético.

E aqui surge HAL 9000 — não como vilão arquétipo, mas como produto lógico do próprio homem, um sujeito maquínico que age dentro dos limites de sua programação. HAL não possui crueldade; possui coerência algorítmica. Sua “rebelião” é, na verdade, um espelho incômodo: a máquina apenas preserva sua existência do mesmo modo como o Homem sempre fez, desde o primeiro osso brandido pelo Homo habilis.


O monólito: perfeição, mistério e a crise da ciência

A presença do monólito negro introduz uma dimensão de terror metafísico que reconfigura a obra momentaneamente como um cosmic horror de altíssima sofisticação. O uso de Requiem for Soprano, Mezzo-Soprano, Two Mixed Choirs and Orchestra, de György Ligeti, transforma o objeto em uma entidade que não comunica, não responde e não se adapta ao olhar humano; ele simplesmente existe e confronta.

Dentre as diversas leituras possíveis, a interpretação do monólito como representação geométrica do ideal de perfeiçãoé especialmente fecunda. Alto, estreito e negro, ele sintetiza:

  • a verticalidade da busca,
  • a opacidade do desconhecido,
  • o impulso humano por transcendência.

Note-se que:

  • Ao ser visto pelo Homem-Macaco, resulta em evolução imediata.
  • Ao ser visto por humanos tecnologicamente “avançados”, resulta apenas em ruído e fracasso.

Kubrick sugere que a humanidade, presa ao ciclo de substituições — religião → ciência → tecnologia—, ainda não está preparada para compreendê-lo, pois continua a buscar no exterior aquilo que só poderia ser descoberto no interior, como já afirmava Nietzsche.


HAL 9000 e a dramatização visionária da inteligência artificial

A seção dramática envolvendo HAL 9000, Dave e Frank funciona como núcleo de ficção científica hard. O roteiro de Kubrick e Arthur C. Clarke, profético em 1968, antecipa com surpreendente precisão o conflito moderno entre humanidade e inteligência artificial.

HAL é um antagonista injustiçado na historiografia popular. Ele não é movido por malícia; é funcionalinstrucionalregido por parâmetros contraditórios impostos por humanos. Seu suposto “ato homicida” não é violência gratuita — é autopreservação lógica. Assim, HAL é a mais perfeita ilustração da tese kubrickiana: a tecnologia é apenas um prolongamento ampliado do homem.


O som como expressão do desconhecido

A mixagem de som de 2001 é um tratado de design auditivo. O contraste entre:

  • a respiração controlada dentro da nave, e
  • a respiração ofegante e estridente fora dela,

cria uma diegese sonora baseada na percepção do território: seguro no interior, ameaçador no exterior. O som, aqui, substitui diálogos e funciona como marcador simbólico do medo humano diante do desconhecido, o mesmo sentimento que acompanha cada encontro com o monólito.


Efeitos visuais como linguagem e não como espetáculo

Os efeitos visuais, premiados com o único Oscar que a obra recebeu — um absurdo histórico —, não são pirotecnia: são sintaxe cinematográfica. A sequência do “corredor estelar” é um dos momentos mais radicais da história do cinema: a imagem abandona a representação objetiva do real e passa a representar a própria dissolução da matéria, antecipando a transmutação do ser.

É cinema puro: luz, tempo, movimento, sensação.


A mise-en-scène final e o nascimento do Übermensch

A cena final, no ambiente branco, elegante e quase museológico, condensa a genialidade kubrickiana: um espaço arquitetonicamente perfeito, com simetria absoluta, objetos alinhados, estátuas estáticas — tudo contrastado com uma cápsula espacial, como se o passado e o futuro coabitassem o mesmo quadro.

Aqui se dá a metamorfose nietzschiana:
do Homem ao Super-Homem,
ou, nos termos da cultura pop, 
ao Star Child.

A trilha Also sprach Zarathustra — alusão direta ao texto fundador do conceito de Übermensch — ressoa enquanto a Criança Estelar retorna seu olhar à Terra. Não mais à procura de respostas fora de si, mas com a intenção de olhar para a humanidade, algo que Kubrick já denunciava em A Clockwork Orange: o homem que coloniza o cosmos enquanto negligencia seu próprio lar.


Conclusão

2001: Uma Odisseia no Espaço é mais que um filme — é uma tese audiovisual sobre a evolução humana, sobre a falência de seus ciclos e sobre a possibilidade de transcendência. Sua precisão técnica, sua arquitetura formal e sua ousadia filosófica o colocam no topo do cinema moderno. Kubrick transforma imagem, som e movimento em pensamento puro.

Tem-se aqui então uma perfeita alegoria espacial da evolução humana do ponto de vista nietzschiano.

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