domingo, 7 de junho de 2009

Poema - O Cadáver e o Efêmero Peregrino

Outro poema de minha autoria (pois é, disse que iria viciar nisso, não disse?). Este aqui foi baseado totalmente em fatos reais, vivenciados por mim na última noite de sábado (06 de junho de 2009), exceto, é claro, no que diz respeito à carga sobrenatural incluída nesta prosa, que deve ser encarada pelo leitor metaforicamente, e não literalmente ou até mesmo metafisicamente. O que o cadáver do poema vem a representar? Oras, leia e tire as suas próprias conclusões.


O Cadáver e o Efêmero Peregrino, por Daniel Esteves de Barros


Memórias de uma gélida e taciturna madrugada de sábado

Cujo único ruído perceptível aos ouvidos humanos

Provinha do forte vento que relutava contra as árvores

Que os seus galhos balançavam com involuntária ferocidade


O impávido zéfiro castigava o peregrino

Que sem propósito e sem destino, traçava o seu caminho

Sozinho, ele perambulava pelas ermas vias urbanas

Lutando bravamente contra o frigido acoimo hiemal


Não havia um escopo neste seu excêntrico ato

Não havia uma insaciável busca por alvedrio

Não havia uma insaciável busca pelo inaudito

Não havia uma insaciável busca pela fleuma espiritual


Quiçá fosse apenas uma fuga existencial

Quiçá fosse apenas uma retrospecção de alguns de seus momentos infantes

Quiçá fosse apenas uma oportunidade de voltar ao passado

Quiçá fosse apenas uma atitude convulsiva de uma mente perturbada


Fosse o que fosse, aquilo era um desafio

Um repto sugerido a fim de confrontar a si mesmo

Não necessariamente uma busca, e sim uma fuga

Uma escapula do que já não mais lhe confortava


Pensamentos martelavam a cabeça do efêmero andarilho

O calor de tuas mãos não mais me aquece, matutava ele

Não mais violarei vosso nuvioso túmulo

Não mais farei amor contigo neste cemitério da vida


Teus abraços não mais me consolam

Tuas mãos encontram-se cada dia mais álgidas

O esputo de teus lábios carcome a minha carne

A macieza de tua vulva só me causa náuseas


Chega! Não mais relacionar-me-ei contigo

Teu formoso corpo não mais tem a mesma forma

Tua volúpia nada mais é do que a propagação de uma ilusão

De um passado que não mais voltará


Despeço-me de ti, ó minha eterna amada

O teu vulto, antes belo, agora se encontra putrefato

E é com poucas lamúrias e ressalvas que tomo esta decisão

Enterrar-te-ei novamente, para jamais voltar a violar vosso jazigo


Agora deverás descansar em paz

Vossa carne poderá, enfim, ser decomposta pelos vermes

E enquanto busco a magia que compõe a autodestruição

Vejo o teu corpo se esfacelando relutantemente em vosso ataúde


Findam-se os lúgubres e sinistros pensamentos

A despropositada e não alicerçada pequena jornada prossegue

A inclemente ventania ainda rasga-lhe o tecido carnal que lhe compõe o rosto

Corta-lhe a carne, alfineta-lhe a vulnerabilidade corpórea e atinge-lhe a alma


O efêmero andarilho se vê então diante de paredes de concreto

Tudo lhe lembra a infância, mas não mais os bons momentos desta

Os muros estão todos ali, parados, no exato lugar onde estiveram outrora

Nada mudou, tudo se encontra da mesma forma que se encontrara anos atrás


Pessoas se foram, pessoas chegaram, pessoas ali habitaram

E a inexorável passagem do tempo a todos castigou

Mas as residências permaneceram exatamente as mesmas

Com suas raras alterações, sendo a maioria imperceptíveis


Pequenas moradias ganharam adendos

Transformaram-se em lares ligeiramente suntuosos

Mas no saldo final, o peregrino constatou que poucas foram as mudanças

E, em sua maioria, mutações que atingiram um resultado ainda mais negativo


As pessoas sobrevivem, vivenciam semelhantes cotidianos

Transformam os seus pertences, mas não transformam a si mesmas

E os anos que lenta e maçantemente se passam, as acoimam

Mas jamais punem os seus pertences, que a tudo parecem resistir


Suas residências ali se mantêm com obstinada rigidez

Mas as pessoas que as construíram, não mais

Seriam então os seus bens ainda mais fortes e marcantes do que elas mesmas?

Tal questionamento perturba a mente do corriqueiro andarilho


Acabrunhado ainda mais pelo gigantesco e atormentador contraste social

Que pode ser visivelmente notado dentro de um insignificante espaço geográfico

Cuja discrepância vem a nos ser anunciada aos berros e alardes

Pequenas suntuosidades aqui, gradativas adversidades meia quadra abaixo


Tudo isto causa uma excessiva mortificação à alma do andarilho

Que se volta para trás e segue, de cabeça baixa, o seu desconexo rumo

E enquanto vaga pelas ermas e sorumbáticas vias urbanas

Passa a lucubrar e opta por voltar-se ao cemitério da vida


Voltei-me para ti, ó minha eterna amada, diz o peregrino

E o esquife se abre, o cadáver se levanta e uma mão puxa-lhe o braço

O efêmero andarilho é então definitivamente tragado pela terra

E é ali, que para a sua perene felicidade, passará o resto de seus dias


Memórias de uma gélida e taciturna madrugada de sábado

Cujo único ruído perceptível aos ouvidos humanos

Provinha do forte vento que relutava contra as árvores

Que os seus galhos balançavam com involuntária ferocidade

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